EARTHLINGS | SAYAKA MURATA

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Eu não sei, honestamente, como explicar a viagem que este livro foi. 

Seguimos Natsuki, personagem que narra a história, durante parte da sua infância e parte da sua vida adulta. Na infância, Natsuki, uma menina de 11 anos, sofre de condescendência pelos pais, abuso, maus tratos, sofre abuso sexual do professor da escola, e fruto disto, acredita que o seu brinquedo, um porco-espinho, é um alien que veio do universo, de outro planeta, e que lhe concedeu poderes para salvar a Terra de uma ameaça iminente. 

Muito do que lemos sobre a infãncia de Natsuki é uma perspetiva inocente e uma tentativa de explicar aquilo que acontece à sua volta. O querer encontrar a escuridão, ir para o espaço, à procura de não sentir nada. 


Mas tudo isto é aquilo que ela, que a sua mente, conseguiu construir para explicar aquilo que lhe acontecia. Há uma cena particular de abuso pelo professor em que a sua descrição de ter alcançado um novo poder é particularmente tocante. O que ela está a descrever é uma experiência de dissociação corporal enquanto algo traumático está a acontecer. E logo a seguir sente que o "poder" pode ser útil, esperando conseguir voltar a fazê-lo porque dessa forma não sentia nada. 

Muitas das afirmações sobre a sociedade em que Natsuki vive são a perspetiva de alguém que não se quer conformar a essa sociedade. Ver Tóquio como uma Baby Factory [Fábrica de Bebés], as pessoas como simples ferramentas, tanto de trabalho  de reprodução, e o facto de tantas pessoas viverem uma vida quase programada pela sociedade, controlados por aquilo que se espera em nome da sociedade no seu todo. Nem se apercebem que têm escolhas, acham que fazem tudo pela sua vontade sem terem realmente uma palavra no assunto. 

Para mim, inicialmente, não havia um problema quando Natsuki, e Yuu, se designavam como aliens, não se querendo conformar ao que a sociedade esperava (falo mesmo do início, depois começa a tornar-se estranho). O problema surge quando as narrativas que Natsuki formou como mecanismo de cooperação com o trauma a seguem até à vida adulta. Ela, agora com 34 anos, casa com um homem através de um acordo "No sex, No children", quartos individuais, porque ambos queriam escapar às famílias e ao que era esperado deles. Só que ela continua a acreditar que é de outro planeta, que é um alien, e o livro dá uma volta gigante no final onde parte da empatia que tínhamos por ela no início vai desvanecendo. Para eles já não há regras, eles dizem que fazem tudo pelo racional, mas o racional também adquire um novo sentido. E no fim, os homicídios, o canibalismo, fica tudo num extremo tão oposto da sociedade que é como se realmente sim, já não fossem humanos. Basicamente eles vão ao ponto de querer provar que são de facto de outro planeta e começam a cometer ações que para eles não seriam imorais, porque são imorais para a sociedade. 

O livro vai ao ponto de nos fazer perguntar até que ponto é que alguém iria para se libertar do passado, para ser ele próprio. 

Na cena em que Natsuki recuperou o sabor, foi esse o momento em que finalmente alcançou aquilo que é suposto ela ser? Foi nesse momento que finalmente se libertou do passado, se afastou dos earthlings o suficiente e o necessário para ser quem queria ser desde sempre?

O mais interessante é como aquilo que ela construiu e acreditava na infância a seguiu para a vida adulta e basicamente fez com que tudo o resto acontecesse, com Yuu e com o marido. 

Será que parte da responsabilidade pelo final é da sociedade em si? 

O final é chocante, num bom sentido. 

"The book depicts a descent into insanity." [O livro descreve uma descida à insanidade]. Escapismo. Força-nos a questionar como é que aquilo se aplica a nós. Adorei.

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ENGLISH

[spoilers]

I honestly don't know how to describe the ride that this book was.

We follow Natsuki, the character narrating the story, during part of her childhood and adulthood. In childhood, Natsuki, an 11-year-old girl, suffers condescendence and abuse from her parents, and sexual abuse from a teacher at school, and because of all of this, she believes that her toy, a hedgehog, is an alien that came from the universe, from another planet, and gave her powers to save the Earth from an imminent threat. 

A lot of what we read about Natsuki's childhood is from an innocent perspective and an attempt to explain what happens around her. The wanting to find darkness, going to space, wanting to not feel anything. 


But everything is what she, in her mind, was able to build to explain what she was going through. There is a specific abuse scene by the teacher in which her description of reaching a new power is especially moving. What she is describing is the experience of dissociating from the body while something traumatic is happening. And right after she feels that this power may be useful, hoping to be able to do it again because this was a way to not feel anything.

A lot of the descriptions of the society in which Natsuki lives are from the perspective of someone who does not want to conform to that society. Seeing Tokyo as a Baby Factory, people as just tools, for work and reproduction, controlled by what is expected of them in the name of society as a whole. They do not even realize that they have choices, they think that they do everything by their own will when in reality they do not have a word in it. 

For me, in the beginning, there was no problem when Natsuki, and Yuu, called themselves aliens, not wanting to conform to what was expected from society (I'm talking about the beginning of it all, then it becomes weird). The problem arrives when the narratives that Natsuki built as a trauma coping mechanism follow her into adulthood. Now she is 34 years old, married to a man with the "No sex, No children deal", different rooms, because both of them wanted to escape their families and what was expected of them. But she continues to believe that she is from another planet, that she is an alien, and the book takes us on a giant turn at the end where part of the empathy that we have for her, in the beginning, starts to vanish. For them there are no rules anymore, they say they do everything with a rational mind, but the rational gains a new meaning. In the end, the murders, the cannibalism, everything gets to an extreme so opposite to society that it is really like they are not even humans anymore. Basically, they go to the point of wanting to prove that they are in fact from another planet and start doing actions that for them would not be immoral because they are immoral to society.

The book reaches the point of making us ask ourselves to what extent someone would go to go free from the past, to be herself or himself. 

In the scene where Natsuki gains her taste back, that was the moment when she finally reached what she is supposed to be? Was it the moment when she freed herself from the past when she got away from the earthlings enough and as necessary for her to be who she wanted to be all along?

The thing I found most interesting is how what she built and believed in her childhood followed her into adulthood and basically made everything else happen, with Yuu and with her husband.

Can part of the responsibility for what happened, in the end, be society's fault?

The ending is shocking, in a good way.

"The book depicts a descent into insanity." Escapism. It forces us to question how that applies to us. I loved it.




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