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Eu não consigo imaginar mais nenhum escritor a conseguir tornar uma história sobre um auxiliar de escrita de uma Conservatória Geral de Registo Civil tão interessante como Saramago.
A história centra-se no Sr. José, um homem com cerca de 50 anos que trabalha na Conservatória e, para além disso, vive na única casa de trabalhador que ainda existe neste local, ou seja, vive numa casa que tem uma porta de acesso à Conservatória.
Não é casado, e não tem grandes relacionamentos, nem familiares nem com amigos.
Então, desenvolve uma obcessão por colecionar informações sobre pessoas famosas que aparecem nos jornais, desde bispos a cantores ou desportistas, até que conclui que as suas biografias ficariam mais completas se conseguisse juntar as informações que os verbetes da Conservatória suportam. Começa, então, a entrar durante a noite na Conservatória pela sua porta de acesso.
Certa noite, por engano, agarra com o verbete de um famoso um outro verbete, de uma mulher de 36 anos, que durante todo o livro foi chamada de "mulher desconhecida".
A obcessão de Sr. José cresce e intensifica-se, agora toda a sua atenção é levada para a descoberta de tudo o que estiver ao seu alcance sobre esta mulher, o que o leva a fazer coisas que nunca antes teria sequer pensado em fazer, como assaltar um colégio.
O problema é que, durante o curso da investigação, a mulher suicida-se. O Sr. José nunca soube ao certo o que faria quando encontrásse a mulher, mas também nunca pensou no que faria se à sua frente surgisse uma parede tão grande como a morte que o impedisse de a encontrar.
Saramago escreve de uma forma que nos põe dentro da cabeça do protagonista mas não com uma visão tão restrita dos acontecimentos. Quando eu própria li que a mulher estava morta, levei algum tempo a acreditar que era verdade, tão como o Sr. José, que teve de ir ao Cemitério, teve de falar com os pais, e teve de ir à casa dela.
Mas o que é interessante é que no final, depois da conversa com o conservador, o Sr. José vai ao arquivo dos mortos procurar a certidão de óbito desta mulher para a destruir, para poder colocar o verbete no arquivo dos vivos e para que ela "viva".
Na realidade, aquilo que o conservador fez antes deste acontecimento, todo o discurso sobre a nova forma de organização do arquivo e como se devia juntar os mortos com os vivos porque "a morte definitiva é o fruto último da vontade de esquecimento", tudo isto se desenrola como se o conservador conseguisse entender aquilo por que José passou, que não foi mais do que construir uma memória desta senhora com aquilo que ia descobrindo.
Esta mulher desconhecida, que nunca chegamos sequer a saber o nome [ o que me fez lembrar um pouco do livro Rebecca de Maurier ], tornou-se talvez na pessoa que Sr. José conhece melhor.
Depois dela, temos também a mulher do rés de chão esquerdo, madrinha da mulher desconhecida, que quase conseguimos ver o início de uma amizade com Sr. José. O problema é que o livro acaba e não sabemos o que lhe aconteceu, porque ele foi à casa dela e os vizinhos dizem que foi levada numa ambulância três dias antes.
Os meus últimos pensamentos são: quem será que ligou para a casa da mulher desconhecida quando Sr. José lá estava? Será que foi o hospital a ligar para o número de emergência da senhora do rés de chão esquerdo, por a afilhada ser a única família que ela tinha? Se sim, será que era para dizer que também esta possível amizade de Sr. José tinha morrido?
Frases
"No casamento existem três pessoas, há a mulher, há o homem, e há o que chamo a terceira pessoa, a mais importante, a pessoa que é constituída pelo homem e pela mulher juntos."
"A pele é tudo quanto queremos que os outros vejam de nós, por baixo dela nem nós próprios conseguimos saber quem somos."
"Nenhum dos corpos aqui enterrados corresponde aos nomes que se leem nas placas de mármore (...) as pessoas se suicidam porque não querem ser encontradas."
"É possível não vermos a mentira mesmo quando a temos diante dos olhos."
"Na vida não faltam coisas por explicar."
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ENGLISH
I seriously cannot imagine any other writer who could turn a story about a writing assistant in a General Civil Registry so interesting as Saramago does.
The story is centred around Mr José, a man around 50 years old who works in the Registry and lives in the only worker house that still exists there, meaning that he lives in a house with a door to the Registry.
He is not married and doesn't have great relationships, neither with family nor friends.
So, he develops an obsession for collecting information about famous people who appear in the news, from bishops to singers or sportsmen, until he realizes that these biographies would be much more complete with the information of the Registry's entries. So, he starts using his privileged access door during the night to go grab that information.
One night, by mistake, he grabs an entry of a 36-year-old woman with the entry of a famous person, who is called an "unknown woman" for the entire book.
Mr José's obsession grows and intensifies, and now all his attention is on discovering everything he can about this woman, which leads him to do a lot of things that he never even thought he would do, like breaking into a school.
The problem is: during the investigation, the woman commits suicide. Mr José never knew for sure what he would do when he found the woman, but he also never thought about what he would do if a wall so tall as death came in front of him and stopped him from being able to find her.
Saramago writes in such a way that he can put us inside the head of the protagonist but not with a so closed vision of the action. When I read that the woman was dead, I too took some time to believe that it was true, as it happened with Mr José, who had to go to the cemetery, had to talk with her parents, and had to go to her place.
However, what is interesting is that in the end, after the conversation with the conservative, Mr José goes to the dead archive to look for the woman's death certificate so that he could destroy it, and then he could place her entry in the living archive so that she could "live".
Realistically speaking, what the conservative did before this, all his speech about the new archive's organization and how we should join the dead and the living because "the definite death is the last fruit of the will to forget", all of this turns into the part where it seems like the conservative could understand what Mr José has been through, which was no more than building a memory of this lady with all was discovering along the way.
This unknown woman, who we do not even discover the name [ which made me think a little of the book Rebecca by Maurier ], became maybe the person that Mr José knows the most about.
After her, we also have the left ground-floor woman, the unknown woman's godmother, with who we can almost see the beginning of a friendship for Mr José. The problem is that the book ends with us not knowing what happened to her because Mr José went to her house and the neighbours said that she was taken in an ambulance three days before.
My last thoughts are: who called the unknown woman's house when Mr José was there? Is it possible that it was the hospital calling the left ground-floor woman's emergency contact, being the goddaughter her only family she had? And if so, is it possible that they were going to say that the other possible Mr José's friendship had passed away too?
Quotes:
"In a marriage, there are three people, there is the woman, there is the man, and there is what I call the third person, the most important one, the person that is built by the man and the woman together."
"The skin is all we want others to see of us, but under it, not even ourselves can know who we are."
"None of the bodies that are buried here matches the names that are in the marble plaques (...) people commit suicide because they don't want to be found."
"It is possible for us not to see a lie even when we have it in front of our eyes."
"In life, there is no lack of things to explain."
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